Minha Infância e as Línguas Moçambicanas

Eramos três irmãos, nascidos na localidade de Nyakwaheni em Inharrime. Devido a guerra civil refugiamo-nos num subúrbio da cidade de Inhambane há 4Km do centro da cidade. O nosso pai sempre insistiu-nos que falássemos Cicopi, a língua materna moçambicana. Aprendemos a falar português na escola, na rua e no campo de futebol com meninos da nossa idade. Neste ambiente aprendemos também a falar Gitonga e Citshwa. Eramos a única família que falava Cicopi na zona. Na rua os outros meninos gozavam-nos dizendo:

– Vacopi comem xifototo “uma espécie de cobra”! Não sabem falar Português! Vieram de wucopi, lá no mato!

Era um bolling de meninos. Tristes relatávamos tudo ao papá e ele dizia-nos:

– Meus filhos, nós somos vacopi até a morte. Todos os nossos antepassados o foram como vocês. Não se deixem enganar. Aqui na cidade viemos para ganhar a vida e por causa da guerra e não para nos assimilarmos ao Português e a vida da cidade. Quando acabar a guerra, regressaremos a nossa terra natal.

Nós não entendíamos o que nosso pai nos transmitia. Queríamos falar Português para ser como os outros meninos da cidade e da zona que só falavam Português quando brincassem. Queríamos ter amigos que falassem Português e até ser como eles. Ser como eles porque tinham sapatos, brinquedos, bola, roupa da mala, lanche e que os seus pais lhes falavam em Português. De tanto nos sentirmos inferiores a eles, lhes chamávamos de “silungwana” que significa “branquinhos”, mas eram negros como nós. O que nos diferenciava deles é que eles eram meninos bem cuidados, comiam três refeições ao dia e até levavam à rua, depois do matabicho, o seu pão com manteiga, jamu ou ovo para nós cobiçarmos e lhes pedir um bocado. Ai estamos fritos. Eles nos aproveitavam para nos fazer castigos como se fossemos coitados a troca de um bocadinho do seu pão. Mandavam-nos fazer corridas ou aceitar uma boa chapada na cara em troca do bocado de pão. Nos consideravam gente inferior, baixa, do campo, pobres, famintos, que limpam dentes com mulala, pálidos, sem camisa e de calções ou furados ou rasgados nas nádegas ou no meio. Era normal vestir calções de remendos, meter os livros escolares num plástico e ir à escola primária pé descalço.

Nós eramos exclusivos na zona. Chegamos a pensar que o papá não gostasse de nós de tanto sermos os mais pobres da zona. Enquanto eles assistiam TV-video nas suas casas de madeira e zinco electrificadas, nós tomávamos o único banho do dia, esperávamos que o papá chegasse do serviço para jantarmos e ouvirmos a rádio emissora de Inhambane através do Silver (marca de rádio) caso as pilhas tivesse carga. Se não tivessem carga recolhíamos para dormir.

Todos dormíamos na mesma cabana/barraca de “makuti” palha de coqueiro. O nosso pai à noite de xiphefu, exigia-nos que relatássemos tudo que fizemos durante o dia e a seguir contava-nos “matimu ya vacopi” histórias da nossa cultura Copi. Ensinávamos o grau de parentesco da nossa larga família, falava-nos dos nomes de todos os familiares (maternos e paternos) desde o quadra-avó até à nossa geração. Eramos bons ao dominar nomes e as relações de parentesco. Eram personagens algumas falecidas, outras desaparecidas e muitas em vida. Contava-nos a nossa origem como família desde a guerra de Ngungunyani até à nossa geração. Explicava-nos o significado dos nossos nomes tradicionais e do nosso apelido. Narrava-nos contos tradicionais, tithetheka e as vezes tixovo. Eramos alegria do papá, mas a desgraça da zona.

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Nos feriados (7 de abril, 1 de maio, 1 de junho, 25 de junho, 25 de setembro) planificávamos ir à Praça dos Heróis e depois aproveitar para dar um passeio pela cidade para ver carros, brancos e seus filhos branquinhos, ver montras das lojas de coisas bonitas que o papá não conseguia nos comprar.

Todos os meninos da zona arrumavam-se com roupas da mala. Juntavam-se em grupos e cada um exibia a qualidade da sua calça, peúga, camisa e até do lanche preparado pelos pais. Nessa altura nós assistíamos tudo de boca-aberta de tanto cobiçar o quão bonito estavam. Dentro dos nossos coraçoes dizíamos:

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– Que me dera se eu também estivesse bem vestido e com o pé no sapato.

Quando chegássemos perto deles para ouvir algo algum elogio a nosso favor já que também estávamos grifados ao último grito era uma lástima. Todos punham-se a rir. Nós eramos a sua graça, mas também um problema por resolver logo ai, antes que partíssemos a cidade. O problema é que não tínhamos roupa da mala e nem sapatos como eles. Vestiámos calamidade que papá recebia do tio Gyamba dos INGC. Neste dia de passeio estávamos grifados de nossos fatinhos (balalaica e calças azul) manda-fazer que a tia Methi nos ofereceu quando passamos de classe. Como eramos três, constituíamos uma tripla e nos auto-apelidávamos por Três Putinhos Chineses (Akhu, Axawu e Xaling) que na altura alegram até aos adultos. Trazíamos nosso lanche num cartucho de papel caqui. Era a mandioca cozida, farinha tapioca “rala” que poupávamos no matabicho e um coco. Era isto que iriamos comer como lanche na cidade. Nestas condições ninguém queria andar connosco de entre os meninos da zona. Ninguém queria andar connosco por que: estávamos mal vestidos, descalços e ainda mais, o nosso lanche não era pão com jamu, manteiga, ovo frito e sumo loumar. Alguns meninos com sentimento diziam:

– Vocês isso é pecado, vamos com eles.

Os mais espertinhos e por sinal os mais bem vestidos diziam:

– Haaa… vocês! É para andarmos com pessoas que vêm do campo? Macopis? Nem Português sabem falar. Esses vão nos envergonhar na cidade. Se vocês querem ir com eles vão de outro caminho sozinhos.

Infelizmente, os poucos que nos queriam ajudar juntavam-se aos outros bem vestidos e se iam. Nós esperávamos uns 10min e em cicopi comentamos:

– He mano, valekeni vatsula. Hinahoka ngu timbi tindzila didhoropani “Meus, deixemo-los partir. Iremos de outros caminhos e chegaremos à cidade”.

Dito e feito, partíamos mas usávamos caminhos corta-mato porque já tínhamos medo que eles pensassem que estamos a segui-los e mais, tínhamos vergonha de andar na cidade onde há muitos meninos estão melhor vestidos que nós.

Chegamos à Praça do Heróis e assistiámos a banda militar a cantar Viva viva a Frelimo, Guia do Povo Moçambicano… e nós acompanhávamos sussurrando pois só dominávamos a parte do coro: Viva viva a Frelimo. Depois fomos assistir as danças tradicionais em Gitonga e a OJM a cantar em Português. Mostrávamo-nos emocionados e então comentávamos as nossas alegrias e admirações em Cicopi em voz alta como manda a nossa cultura. Os outros meninos olhavam-nos surpreendidos e com desprezo de cima para baixo e de baixo para cima e depois, em coro diziam:

– São meninos da rua. Tinyolwene, Tinyolwene, Tinyolwene! Era o outro bolling, desta vez na cidade!

Não eramos meninos da rua nem Tinyolwane, mas sim meninos diferentes dos outros que desde a sua infância colocaram os pés junto à razão, à etnia, à pertença, ao passado, à língua materna e cultura moçambicana para resistir à assimilação ao Português ou à perca da identidade moçambicana. Hoje que somos crescidos sentimos que não queríamos fugir à nossa realidade cultural e linguística.

Na nossa infância houve muitos meninos que foram vítimas da aculturação e que hoje não sabem donde vieram, não conhecem nenhuma língua moçambicana ou se conhecem apenas dizem que “Meu pai é Makonde e minha mãe é Mandau” ou se conhecem provavelmente querem ser aqueles “branquinhos” negros da minha infância. Não sei se será devido à vergonha que os meninos da minha infância tinham contra nós, não sei se é por excessiva aculturação ou assimilação ou não sei se é uma questão do tempo que um dia regressarão às raízes nas quais lhes chamam em línguas moçambicanas:

– Filhos voltem a casa! Há espaço e comida para todos!

Felicitações a todos os meninos que cresceram e preservaram as línguas moçambicanas e que hoje as falam sem vergonha, as escrevem na internet e que as transmitem aos seus filhos!