Numa época não remota, na capital do império médio […], o jovem escrevedor poliu as lentes de seus óculos e pôs-se muito bem sentado diante de uma folha branca do engenho de dactilografar. Depois estalou os dedos como um saltimbanco que se estica, passou a língua sobre os lábios e, imprevistamente, milhares de vozes começaram a guerrear dentro da sua cabeça, vozes de pessoas, crianças, mendigos, astronautas, de mulheres que catam amêijoas; vozes de animais, pedras, cactos, de quadros fantasmagóricos suspensos; vozes de vida e morte, de anjos e demónios. Era sempre assim, a sua cabeça era uma incalculável anarquia, cada ser murmurava o que lhe dava na cachimónia, vezes tinha que parecia um bazar, com aquelas patroas que não conseguem amparar a língua, o dedo ou os olhos; outras vezes era uma assembleia, com coelhos e chicos-espertos, elefantes dorminhões, rinocerontes pançudos e hienas com assaltos de risotas; trincheiras, fundo-do-mar, paragem de transporte público em hora-de-ponta, espaço, imensidão sideral, aí as vozes planavam em silêncio, áfonas, gritavam em escuridão, eram leves, levitam, apócrifas.

E o jovem escrevedor ficou só, com os ouvidos abertos, escutava àquela zurrapa, sem identidade, sem opinião, as vozes fluíam com mais vida do que a sua própria vida, parecia encantamento, ele era tantos, tantos outros dentro de si, não tinha rótulo, e pessoa tão calada que era, quem o visse certamente não diria que ele tinha muito barulho em sua cabeça. Suspirou um longo trago, pousou os dedos no teclado e escreveu: “Os livros…”! […] Pausa! Outra! Outra pausa longa! Silêncio, o mais profundo silêncio cantava-lhe em silêncio. As vozes, aquelas vozes malditas, já não conversavam, nem sequer uma, e o escrevedor quis olhar para a sua cara estúpida, e sentiu um baque no estômago, vibrante, uma fome de ansiedade… Ah!, agora estava só, era só ele, ele só, sozinho e mais ninguém, chupou os dentes, parecia um rato, apagou as palavras que escrevera. “Hoje estou sem inspiração”, ouviu alguém assobiar ao seu ouvido. “Não!”, disse ele, “… Um copo de água já me aviva as ideias.” Mas não avivou, o escrevedor exasperou-se consigo mesmo, nem sequer um haicai, três simples versos de menos de vinte sílabas!, que desperdício de criatividade.

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Naquele dia o escrevedor de destinos jurou que não valia o título que carregava, e todos aqueles súbditos e residentes do jardim imperial que o consideravam nobre, génio que rimava às almas dos fracos, que escarnecia dos altivos senhores da corte, que tinha a paixão na veia em vez de sangue. O escrevedor estava determinado, deixaria tudo, o que conquistara até àquele momento, a sua modesta multidão de apreciadores, os anos perdidos em estudos, mas, de que lhe valia aquilo se não tivesse uma musa? O jovem escrevedor sorriu, pensou na mulher que admirava com cuidado, com muito afecto, como pudera esquecer… As vozes, ele ouvia-as novamente, falavam dentro dele. Escolheu uma voz, ouviu-a: “Somos tantos que o meu nome é Legião” – escreveu.

(Obs: A epígrafe desse texto é da autoria de Ângela Scarlette, com a devida vénia.)