Os meus pais são ateus, não professam nenhuma religião, mas, no entanto, são “demasiado” tradicionalistas. Ensinaram-me sempre a seguir por dentro dos parâmetros tradicionais. E assim fui crescendo. Não ia à catequese, não ia à igreja, mas todos os domingos íamos nós, em família, limpar e depositar flores nas campas dos nossos entes queridos. Não falhava, nem que fosse ao cair do dia, lá, à tardinha, íamos nós. Limpávamos as campas (primeiramente era só isso) e, com o andar do tempo, passamos a orar… O que quero dizer é o seguinte, os domingos sempre eram aborrecidos para a minha pessoa. Detestava eles por um simples motivo, tínhamos de ir ao cemitério! O outro facto que me irritava era que eu tinha de carregar um “bidon” com água, por vezes de 25 litros. Puxa, logo lá, onde havia grandes rostos, ainda que tristes, apareciam várias “miúdas” bem lindas… por vezes acabava se confundindo a aquele recinto sagrado com, uma churrasqueira, por exemplo. Porque a indumentária que algumas raparigas traziam, era por vezes embaraçosa , para não dizer escandalosa. Alguns carros entravam no cemitério e, enquanto uns choravam a morte de um recém partido, eles escutavam música. Os domingos eram tão aborrecidos que, para superar a essa falta de ânimo, passei a observar tudo aquilo que acontecia dentro daquele local.

Crónicas do cemitério

Frustrava-me eu, ao reflectir sobre a diferença das campas que lá existe. Por um local passavam pessoas e urinavam, bem ao lado estava uma campa que mais aparentava ser um pequeno entulho de areia. Do outro lado estava uma outra, bela, devidamente arquitectada e, com o mármore resplandecendo por tudo quanto é canto. Pois é, e há a ala “VIP” onde só vai enterrada gente graúda. Os Nhantumbos e Chiloveques ficavam de lá… do lado da gente comum. “Raios, sequer na morte somos todos iguais? Será que o dono da campa mais luxuosa terá um atendimento, igualmente vip, assim que chegar ao céu?” Com tempo comecei a aperceber-me de que o cemitério era, e ainda continua sendo, uma fonte de rendimento para várias famílias… Havia disputas de clientes entre os guarnecedores das campas. Eles limpavam-na, e “velavam” pelo abrigo dos mortos. No final do mês recebiam alguma recompensa, um salário que era por eles fixado. Havia, também, os pequenos, os carregadores e vendedores de água. Com a falta do liquido mais precioso, não se podia fazer quase nada… a imundice tomava conta de tudo quanto é canto… tal e qual se faz fora do cemitério, cada qual limpava o seu canto e jogava o lixo ao lado do seu quintal que, era o abrigo de mais um morto. E o lixo ia rolando de campa em campa, era preciso velar. Essas crianças, que mal conseguem se assoar sozinhas, eram as salvadoras das nossas aflições a cada jornada. Vendiam-nos um “bidon” de 5 litros a 2, 3, 4 ou até 5 meticais, no máximo! Fosse segunda , terça, quarta… feira, elas lá estavam. E eu questionava-me: ” Não deviam estar na escola? Os pais concordam com isto? Que futuro terão? O que podem aprender aqui, rodeadas de mortos, ingerindo e fazendo da tristeza alheia, uma fonte de rendimento?” Podia observar alguns sepulcros que eram abertos, para não dizer vandalizados… algum malandro ia tentando ganhar a vida, nem naquele local havia paz, procurava-se o pão a todo o custo. Podia também observar camisinhas usadas pelo chão, sim, há quem vá satisfazer aos seus desejos carnais, e quem sabe, deitado por cima de uma bela campa de mármore!? E estas perguntas sobrevoavam-me a cabeça… e como é hábito meu, ” matutar” sobre tudo aquilo que mais ninguém “matuta”, deixava-me de molho, nelas. E o tempo foi andando, de certo que as coisas não mudaram para melhor, de certo que continuam na mesma, ou pioraram… Estando eu por essas andanças virtuais, quedou-se o meu olhar numa foto que rasgou-me o peito. Duas crianças lá estavam, no retrato, sentadas por cima de uma campa com “bidons” de água ao lado… de certo que com fome… fiquei triste, pois é um problema que há muito existe. Mas não há uma mão capaz de ampará-las e dar-lhes um sonho, que não seja um prato de comida a cada noite. Essas crianças continuam lá, hoje em dia são coveiros, e porque não, os malfeitores que se aproveitam de quem usa o cemitério como um atalho, ao regressar aos seus aposentos? E assim vai o mundo, assim vamos nós, observando a casa ruindo e, friamente, seguindo em frente…

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Edmund Burke “Para que o mal triunfe, basta que os bons não façam nada.”