Depois de heliodoro baptista, eduardo white é o meu outro poeta que se me foi, e a ambos não abracei, não por escassez de circunstâncias ou inacessibilidade dos artistas, mas porque os ponteiros da vida fizeram-se cheios de testemunhos e histórias, e eu, com áurea naïve, achei-me consumido pela desordem mundana – se não eu era demasiado tenro para brincar de poeta, foi supérfluo o meu brio de autor que, afinal, muito ainda está por experienciar. Heliodoro e white foram explicitamente sobreviventes, e viveram os sonhos como santos, mártires de uma causa superior que é a poesia. Dos dois aprendi a amar, a ulular nos versos as minhas paixões e as minhas mulheres. Dos dois conheci a clandestinidade, e mais do que isso, a ser um “campeão da liberdade”, pois indistintamente do que disse torga, somente heliodoro e white lutaram continuamente com os seus próprios demónios, até que lhes foi concedida a libertação.

White por Bruno Mikahil

Eduardo white ascendeu ao embondeiro, espécie de parnaso africano, há um mês, e é dele que quero falar neste texto. Ouvi-o, pela primeira vez, de uma página dos antigos manuais de língua portuguesa do ensino secundário, “amar sobre o índico”, e nasceu em mim uma chama pela obra do poeta cuja admiração influenciaria, aos dezasseis anos, a minha transição artística: do desenho e artes plásticas à escrita e poesia. A poesia que descobri ligava este ‘amor’ de nós homens à pátria de nós moçambicanos, “tu/ doce acre/ linfo possuído/ que a terra grita/ amo-te assim/ neste lado do barco.”, e também o amor de feitiço, lírico, de um erotismo que trovejava na realidade de um país que não tinha tempo para amar. Eu, porém, descobria a poesia como o primeiro sulcar orgâsmico, e a mim pouco comunicavam os materiais do amor, senão a fuga para dentro de mim, a passagem para o interior da solidão, a curiosidade de enlouquecer na fragrância do patriotismo, senão o sonho de acordar o país (e o mundo) para o meu desencanto, próprio dos adolescentes.

Distanciei-me de white conforme fui sabendo de outros poetas possíveis, sentindo o sabor dos outros lados da ‘charrua’, de outras atitudes – mais realistas e existencialistas. Voltei a encontrar o white anos depois, num dia (que ignoro se chovia ou solarava), quando assinei para o meu primeiro manuscrito. White, como se diz, inspirava-me, fazia sentido para mim, era uma ideia absurda, porém eu gostava de acreditar: como white, eu sou natural da zambézia, terra dos prazos, dos bons sinais e do palmar. Assim, era como se fosse de algum modo hereditário, direito próprio – ser tão grande poeta com o white – como se me corresse nas veias dos zambezianos saber cultivar está flor de lácio.

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Queria o white para preludiar o meu livro, a yolanda, da “alcance”, tentou ligar-lhe, o poeta estava provavelmente numa tasca àquela hora do dia. Guardei o número e telefonei-lhe outras vezes várias, sem réplica. Disseram-me por onde o procurar, porém, naqueles dias, nem sequer pelo “pulmão da malhangalene” ou por aqueloutro restaurantezito, que fica ai próximo dos edifícios russos, ele passou. E assim ficou a história do prefácio que ele não escreveu.

Cruzámo-nos, anos depois, na autoestrada das redes sociais, estudava eu na china, já pequeno coleccionador das suas livrocuras de amor. Declarei-me prontamente, reconheceu-se o laço que nos unia, o palmar e a paixão pela ilha – a ilha que eu roubara (sem saber como) dele, do poeta de ibo, de saúte, de sant’ana… White era poeta. Eu aprendi a ver a poesia através dos seus olhos, a tecer versos com os nós dos seus dedos. Dele assimilei que a poesia é branca, ou preta, tanto faz, de outra cor qualquer, dependendo dos óculos; que é vazia, sem valor, que não presta para nada, senão para imitar a realidade, comandar a sociedade, ou se é poeta de verdade ou não se o é, sem meias palavras. White era poesia, ele próprio, a sua vida era poesia, e do mesmo jeito que a sua poesia voava, ele também voava, sem medo de cair e quebrar os dentes – cair, para white, só se fosse para beijar a bandeira de moçambique, para depois alçar um voo em asadelta, em magia sublime.

Com white, ultimamente, lamentei a morbidez das editoras, essas vis fábricas de esquecimento, e queixava-se o poeta regularmente, incansável, e elas, hienas risonhas, justificavam a sua podridão com relatórios sem verdade alguma. “Filhos da puta!, a poesia vende, sim senhor!”

Do que rascunhámos, pouco aconteceu, e na madrugada do dia “w” (que já agora lanço o desafio para que se institua um feriado neste mesmo dia, em homenagem a white e aos escritores moçambicanos), moçambique perdeu o seu poeta mor do amor, o homem que mais amou os seus, a sua pátria e os filhos dela, as prostitutas e os vagabundos, os poetas, os poetas de fato-e-gravata e os políticos. White merecia a profissão “poeta” nos documentos oficiais, e na sua campa, “aqui jaz um poeta” serei responsável por um dia mandar esculpir, como os versos que fez, “em falta, a pão e água”.

maputo, 30-09-14 23:10

Foto: Bruno Mikahil