Literariamente falando, 2017 será irrepetível. Foi um ano de festa, então vejamos, Luís Carlos Patraquim, Ungulani Ba Ka Khosa e Aldino Muianga assinalaram décadas (entre 40 a 30 anos) de produção artística; o selo Cavalo do Mar Edições, iniciativa do poeta Mbate Pedro, estreou-se com um naipe de autores de luxo e nove títulos; na cidade da Beira, a Editorial Fundza trouxe alento às súplicas dos escritores daquele ponto do país, o que ajuda, a bem dizer, a descongestionar os espaços culturais; a “Fundação Couto” continuou a apresentar novos autores (ex. a pianista Melita Matsinhe) e a divisão editorial da Escola Portuguesa de Maputo levou, de uma só vez, cinco autores/livros para o Plano Nacional de Leitura de Portugal. A continuar assim, com paixão, novos (bons) livros e editoras, Moçambique poderá, em pouco tempo, conquistar o espaço que há muito lhe é negado e/ou limitado.
Livros que fizeram o meu ano
Luís Carlos Patraquim celebrou, em 2017, 40 anos como escriba, e para marcar esta inaudita efeméride, ofereceu-nos três títulos novos de uma só vez, “O senhor Freud nunca veio a África” (crónicas) e “Música Extensa” (poesia) pela Alcance, e “Deus Restante” (poesia) pela Cavalo do Mar. Três livros de Patraquim são três garrafas de vinho da melhor casta, impossível bebericar tudo “num só instante”. Dos três, “O senhor Freud nunca veio a África” é, para mim, um clássico, e deverá, sem dúvidas, estar lado a lado com “O Cronista”. Arrisco-me a dizer, numa menção inversa de António Cabrita (em apresentação a “Manual para Incendiários”), que este é um livro de crónicas para poetas, o mesmo que diz o prefaciador, Zetho Cunha Gonçalves, “estas crónicas [são] a alta prosa demiúrgica de um poeta que nada concede à facilidade” (p. 3). Gosto deste maravilhoso livro pela oportunidade que [ele] nos concede de conversar e conviver com Noronha, Rui Nogar, Craveirinha, Khan, Alba, Rangel, entre outros. “O senhor Freud nunca veio a África” é um livro soberbo que atravessa, ao longo dos tempos, o quotidiano de nomes importantes das artes do país.
Um outro livro que fez o meu ano foi “O Blue da Majika”, de António Cabrita e João Donato. É evidente que existirão sempre incertezas quanto à nacionalidade de Cabrita, é ainda português ou é já moçambicano? As certezas são duas, porém, não é um espião fascista mas é um mestre da palavra tanto em Portugal como em Moçambique. “O Blue da Majika” é um livro intrigante, eclético (explico isso a seguir), desconcertante e, às vezes, erótico. A obra é literalmente uma sinfonia, aliás, uma orquestra (de quinze instrumentos tradicionais de Moçambique) a que João Donato deu vida em fantásticas esculturas. Em suma, os poemas nascem das esculturas, e mais do que um livro de arte, ele é sobre arte. Uma perfeita imagem, “assim que a alba se assenta no seu caldeirão de nada azul, cobre como uma redoma a cidade”, está logo na primeira página.
“Os oito maridos de dona Luíza Michaela da Cruz” (Alcance Editores, 2017), livro de Adelino Timóteo, é como uma peça de teatro, e nele, os condimentos principais, uma mulher – bela, é útil a referência, como a Cleópatra – e o poder. O palco onde tudo se desenrola é a República dos Prazos do Zambeze, possivelmente Maganja da Costa. A história imperialista e pré-colonial da dona Luíza é contada numa voz e técnica que ainda não me acostumei a “ouvir”, o Adelino recriou-se, neste novo livro. “Os oito maridos de dona Luíza Michaela da Cruz” é um livro sobre feminismo (e como nota José dos Remédios, o Adelino tem “uma paixão por mulheres poderosas”), de certo modo, mas também sobre a guerra entre as raças e classes.
Livros que merecem mais
M. P. Bonde é a “revelação poética” de 2017, que viu dois partos seus, “Ensaios Poéticos” (Cavalo do Mar Edições) e “A descrição das sombras” (Fundação Fernando Leite Couto), vencedor da primeira edição do prémio da casa. Costumo dizer, em brincadeira, se Patraquim é o “Deus Restante” da nossa poesia, Bonde é o “Novo Deus”. Mas o Bonde não vale pelo livro premiado, sobressai pelos seus “Ensaios…”, que são “como o respirar de uma baleia azul, junto à superfície, onde o poeta deixa de ser asceta, deixa de viver no seu desassossego, nos tais «lugares incógnitos» (p. 32), em busca de «um lugar ao sol» (p. 47). M. P. Bonde é, segundo o Patraquim, um pouco de White e um pouco de Witman (e um poucochinho de tantos outros).
Ungulani Ba Ka Khosa tem destas, faz-nos esperar bastante para que o gozemos. O seu último romance, “Entre as memórias silenciosas”, foi lançado em 2013, e desde lá, apenas rumores de uma nova saga do Imperador de Gaza. “Cartas de Inhaminga” (Alcance Editores) é um livro de 123 páginas que reúne dezanove crónicas (publicadas depois de 1990, em diversos jornais do país). Os textos, frescos e com repletos momentos de epifania, são sobre Moçambique, sobre as suas coisas boas e más. Talvez seja, também, um “livro de memórias”, de comemoração, mas para o autor, este irresistível “Cartas de Inhaminga”, de um ritmo único, profundo, é um livro sobre “o direito de pensar diferente e o direito de sentir”.
Outro livro, também publicado pela Cavalo do Mar, que a primeira se estranha o título mas que merece ser de domínio público, é “DESdENHOS – Temas Infantis para Adultos”, de Hélder Faife. Volto a repetir o que escrevi sobre o livro, há uns meses. Hélder Faife combina, nesta obra, “as suas qualidades para fazer uma poesia distinta, fascinante, divertida e polida”. Em “DESdENHOS” quase tudo é perfeito, a linguagem, a cadência, a forma, etc. É uma obra-prima, sem espaços para remendos. Para José dos Remédios, “mais do que um livro, este «DESdENHOS» é um manual que incorpora lições de vida que as crianças dão”. Sinceramente, este livro tem sofrido muita injustiça por parte dos leitores e da crítica e Hélder Faife fez um trabalho fenomenal.
Livros invulgares do ano
“Rabhia” (Edições Esgotadas), de Lucílio Manjate, tem uma capa muito bonita, entretanto, publicado em Portugal, pareceu-me preconceituosa. “Rabhia” é um daqueles livros premiados que procuram cunhar um estilo. Uma novela com rasgos de policial, a história parece preceder ou vir depois de “A legítima dor da Dona Sebastião”. Mas “Rabhia” não emociona, é um desfile de personagens matematicamente construídos e da condição humana, cruel (maquiavélica), egoísta e ciumenta. Quem, afinal, matou Rabhia? E porquê? As formas como estas respostas são trazidas, com oscilações de pontos de vistas, com shifts da voz narrativa a meio do texto, muito me recordam os latinos Cortazár, Juan Rulfo e Pedro Juan Gutiérrez… “Rabhia” É, acima de tudo, uma história quente, vital, de conspiração e repleta de esperança.
A proposta de Raffael Inguane, “Sexo & Grafia” (Piripiri Sakana), é, para o bem ou para o mal, inusitada e interessante. A ideia do livro seria uma exaltação poética “sexo-social”, entre o erótico e o atrevido, mas, na maioria das vezes, “Sexo & Grafia” é pornográfico e hilariante. Está claro que Inguane não se propôs a fazer um erotismo a White ou a Adelino Timóteo (“Livro Mulher”, por ex.), e embora o seu sem pudor se aproxime ao “Amor Natural”, de Drummond de Andrade, é com o estilo de Bukowski e John Fante que ele “mal brinca”. A poética do livro não é brilhante, é simples, audaciosa e nos faz rir. A surpresa é esta, misturar sexo com feijoada e outros cozinhados, previsão meteorológica, motores, etc. Há provocação – ainda que apenas da perspectiva masculina.
O ano 2017 continuou a ser miserável para a literatura infantil e juvenil. “Mutondi o tocador de timbila” (Editorial Fundza), dentre os raros títulos publicados, consegue ser o mais original. Entretanto, esta segunda incursão de Alexandre Dunduro está aquém do nível de desenvoltura e fluidez do seu primeiro livro (“Mwidja”). Mutondi, herdeiro de Padhukwa, abdica da coroa e segue o seu coração: ser um tocador de timbila; aprende a arte e, usando a música, evita uma guerra, num desfecho Deus ex machina. “Mutondi o tocador de timbila” é, por vezes, chato: faltam-lhe imagens, abusa de clichés e tem uma atitude didáctica. O livro safa-se, contudo, porque tem um narrador intrometido e comentador, o que dá uma certa graça ao livro. A ilustração do texto, de João Timane, é repetitiva e “sanguínea”, de muito mau gosto.
É bom saber que temos críticos literários, que versam sobre o assunto com substância. Ainda que, talvez, P.P Lopes por beneplácito da modéstia negue esse título. Mas os comentários feitos deixam um prenúncio de que estamos perante um exímio cricrítico na matéria literária. Se a penas foi feliz na escolha das palavras, nunca saberei, o facto é que inspiram a que se pense: wow este sabe do que está a falar.
Apropósito, eu conheço Lopes sem o conhecer! O conheço a partir do C.C Cossa, um amigo e colega. Fala muito bem da sua habilidade com a escrita, agora entendo porquê.