“A loucura deve estar no texto, não nas atitudes.”

Ungulani Ba Ka Khosa

Ouvi o nome “Sangare Okapi”, pela primeira vez, quando eu era caloiro na universidade. A minha prima, a Milla, dizia-me, com irritante frequência, que eu era como o seu professor de português: “louco”. Autor de três livros, premiado e respeitado pela crítica, Okapi é fruto do bom amor, do seu fluido, é um poeta de fortes convicções literárias e que não se preocupa com o “espectáculo chulo” – como diria Julien Gracq. Não publica há quase meia década, e nestes tempos em que os “poetas” daltónicos seguem publicando poemas e poemas, iguais como os seus rostos sedentos de atenção, a sua voz traria, infalivelmente, uma agradável sensação.

As nossas conversas tornaram-se profundas nas “tertúlias” da Casa da Cultura do Alto-Maé, e desde lá, a minha admiração pelo poeta apenas cresceu. Confesso que sempre o tive por um enfant terrible, como Artur Rimbaud ou Eduardo White, inovador e avantguardian. Este texto é fruto de uma pequena conversa que tive com o poeta, há quase um mês, em sua casa. É útil referir que Sangare Okapi acabara de perder a sua esposa – enquanto participava da Feira Nacional do Livro de Poços de Caldas, no Brasil – e eu não sabia se fazia ou não a entrevista. Ao todo, foram 11 questões sobre, essencialmente, a sua escrita e poesia.

Pedro Pereira Lopes (PPL): Por que é que escreve?

Sangare Okapi (SO): É uma pergunta, à primeira, fácil, mas que causa em mim… muita angústia, muita angústia! Confesso que não sei o que escrevo, porque escrevo e para quem escrevo. Sei que sou escravo das minhas agruras… Fico a pensar na escrita de forma muito insipiente; aprendi a ler antes de escrever. Filho de mãe professora, do ensino primário, não tinha como fugir a isso, e penso que isso é que determinou aquilo que vou fazendo hoje, e o meu pai já escrevia teatro e trabalhava seriamente com a palavra e de forma directa. Directa no sentido de estar no campo, perguntar e registar… para compreender a vida dos que já sabiam muito mas não sabiam muito. Não sei se respondi ou se calhar coloquei mais perguntas. Há muitas incógnitas na minha cabeça. Sempre me confrontei com a parte mais difícil. Eu acredito que escrever é aquilo que não sei fazer, porque há muita escrita nas pessoas que não aprenderam os hieróglifos.

PPL: O que é poesia para si?

SO: Poesia não é aquilo que se procura. Olho para a poesia como qualquer coisa que se enquadra num saco contundente, naquela parte da literatura. A poesia, em síntese, é uma letra que sutura, satura e se deve aturar. A poesia é bonita. Sabe o quê, não tenho ideias coerentes!

PPL: O que é que faria se não fosse poeta?

SO: Se não fosse poeta seria curandeiro. A poesia cura. Curandeiro… Pereira, você é maluco! A poesia cura, Pereira, cura de diversas formas. Por exemplo, o silêncio. Porque o silêncio nos convoca a uma outra terapia: o tempo. O tempo…, e se quisermos podemos resvalar até à memória, porque temos lápides. Aliás, você fala muito de haikus ou haicais, não sei… mas as lápides são essências daquilo, as lápides nos ajudam. Uma das formas de fazer poesia é visitar outros museus: cemitérios.

PPL: E o teatro? O SO foi coprodutor, foi até premiado…

SO: Coprodutor porque não tinha como fugir daquilo. Nego, hoje, dizer que é genético. Não é genético, era a perspectiva de como o mundo deveria correr. Gostava dalgumas ideias construídas, gostava das ideias de William Dubois, gostava, gostava, não tinha como fugir, e na altura não tínhamos muitos livros no ensino secundário, se não ler Ki-Zerbo, mas depois enxergámos outros pan-africanistas, digo que até liámos o Thabo Mbeki; mas era o que nos ensinavam. Na verdade, o que me motivava mais era olhar o teatro como a literatura viva. O teatro continua a fazer o seu papel como literatura viva.

PPL: Acha que o seu livro de poesia neoconcreta foi bem recebido, que é um livro compreendido?

SO: Não sei se é um livro compreendido, mas é o meu livro primeiro, o meu primeiro livro. Às vezes converso com alguns amigos escritores, como é o caso do Lucílio Manjate… eu fiz tudo ao inverso, sinto que o meu primeiro livro foi o “Mafonematográfico”, e tinha como título “Poesia Pouca – Pedagogia da Poesia”. Mudei o título porque surgiram dois outros projectos literários, que mais me marimbaram, que era “O Inventário de Angústias ou Apoteose de Nada”, em homenagem ao meu irmão, e já tinha o “Mesmos Barcos”, que é um livro de carteira. O último livro é o primeiro que, historicamente, se vai dizendo que é o outro, o outro, do outro… Na verdade, eu arrumei os textos, não sabia muita coisa de poesia, mas fazia exercícios. Chegou-me às mãos o livro de Mario Benedetti e eu fiquei com “Inventário”. Depois veio o Paulo Favaró, que é um estudioso, que estudava a poesia Tropicália, onde aparece Gal Costa, Gilberto Gil, Osvaldo… então, era uma turma de uma estrutura grafemática incrível. Fui compreendendo alguns cenários de um estilo de poesia que me agradava, pela forma exibicionista e fashion das palavras, elas desfilavam na página, era uma forma de exposição. Ajudou-me bastante a ter a capacidade de olhar para o preenchimento dos espaços na página. O livro não foi chancelado como poesia e eu gostei, foi considerada prosa. Isso agradou-me bastante, quando dizem que é prosa, fiquei satisfeito, qualquer um tem a sua posição fora dos cânones instituídos.

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PPL: O seu primeiro livro publicado (“Inventário de Angústias”) é prosa-poética. Por que mudou de estilo?

SO: Não sei se é prosa-poética. É um caderno onde procuro fazer uma incursão para representar o meu irmão – eu repito isso sempre – que me ensinou a ler. Não sei se é prosa-poética. Não sei muito bem o que é isso. Eu escrevo extremamente curto. O “Inventário” é diferente porque na dificuldade de escrever de forma extensa o que sinto, sinto maior dor nos versos menores, “enxuto”, como diz o nosso amigo poeta [referência a Amosse Mucavele].

PPL: Considera-se um poeta louco (como Alba, White)?

SO: Sangare não é um poeta louco (como Alba, White, Armando Artur…). Sangare é essência deles. A loucura tem uma dimensão, é como o ovo, não quero aqui citar outros que tem a gema mas não tem a clara.

PPL: Para si, ser poeta é uma bênção ou maldição?

SO: Maldição! Maldição – não no sentido da palavra aglutinada. Ela deve estar um pouco solta, “mal dicção”. A poesia, toda ela, vive da dicção. Uma poesia sem dicção não é poesia. Não há bênção na poesia. Não há maldição, há má dicção. Há muitos que escrevem, mas devemos respeitar a dicção.

PPL: Terá, o seu jeito poeta, influenciado negativamente a sua vida?

SO: Negativa, não! Positiva, sim. Não há mais nada que me faça rir, sorrir, dançar, chorar… A poesia, a poesia para mim existe como algo substancialmente concreto, inteira!, no sugestivo verso de Patraquim. A poesia é positiva para mim, é uma terapia, cura. Não quero ser incoerente, a poesia cura. Por isso se fosse para ser outra coisa, seria curandeiro.

PPL: É acusado de se ter apoderado de ideias, versos e estilo do poeta Ruy Ligeiro. Gostaria de comentar?

SO: Gosto muito do Karonga, aliás, como o trato, Carlos Maurício… Ideias, eu não sei. Eu penso que há disciplinas que estudam um pouco disso. Mas não é tão importante… Recordo-me de algumas inquietações: apoderar-se de ideias, apoderar-se de textos, são falácias. Geralmente, quando as pessoas aprendem umas das outras, avançam-se ideias… quantas vezes aprendemos uns com os outros? Há disciplinas que estudam isso! Fala-se hoje de dialogismo, de intertextualidade, quer dizer, há muitas correntes. Mas quero deixar claro que ele ensinou-me muito, não tenho medo disto.

PPL: Gosto de um verso seu que está no “Inventário”, onde diz “Antes estar só era casual. Agora estar só é um ritual”. Gostaria de comentar?

SO: Estou muito fraco. Hoje, é como se eu estivesse preparado para a vida. Eu sempre disse que li um livro muito bonito, de Simone de Beauvoir, “A Cerimónia do Adeus”. Eu consigo este livro porque o roubei na biblioteca da AEMO [Associação de Escritores Moçambicanos]. Amei bastante, eram conversas entre os dois, conversavam bastante, tomavam os seus cafés, discutiam… são duas figuras que tinham uma grande dimensão do conhecimento. Inventei a minha versão de Simone de Beauvoir, que se foi, e estar só continua a ser um ritual. Eu a conheci e ela dizia-me que não queria ler, só queria um livro, tudo ao contrário. A [Simone] do Sartre já estava altamente cultivada, eu tinha de a cultivar. Quando ela já estava cultivada, eu é que já não lia, ela era quem me questionava, “Leste o quê hoje? Escreveste o quê hoje?” A literatura sempre foi importante. Estou só! É um ritual.