“a suposta morte da literatura moçambicana assentava no facto de uma geração mais velha […] não ceder o espaço necessário para o surgimento e afirmação de novos autores…” Lucílio Manjate e Sangare Okapi, Antologia Inédita

Nelson Lineu deve ser o poeta mais sorriso fácil e carismático que conheço, ainda que eu o tenha antes estranhado, há alguns verões, nas oficinas de escrita da professora Fernanda Angius. Nascido em Quelimane, em 1988, é membro fundador do Kuphaluxa, grupo comprometido com o livro, onde foi secretário-geral e director da revista “Literatas”, por eles editada. “Cada um em mim” (2014), seu livro de estreia, saiu em digressão pelo país e, confessou-me o poeta, “foi muito bem recebido”. Do seu livro de estreia [poesia] são notáveis os versos telegráficos e límpidos, tercetos e quadras e alguns rasgos longos. A poesia é suave, verso livre e, quase sempre, com terminações magníficas. Talvez seja devido ao curso de filosofia que o poeta fez, pois é frequente a ideia de se estar perante a silogismos poéticos ou aforismos. Salienta-se ainda o “sentido de colectividade” dos poemas, como atestou Celso C. Cossa, e o não exagero ou uso melodramático e pomposo de paráfrases e metáforas dos “novo poetas”, artificiosa, que compromete a interpretação. Do livro no prelo pouco se pode dizer: será que este “Cor do voo” mergulha no lirismo, nos temas que lhe são recorrentes, a infância, a memória, o erotismo, a terra que o nasceu? Esta entrevista “fala um pouco de tudo”, do seu compromisso com o grupo que ajudou a erguer e da sua produção poética.

Nelson Lineu, durante uma apresentação no Instituto Camões, 2015

Pedro Pereira Lopes (PPL): A tua estreia aconteceu em 2014. Três anos depois, o que se pode esperar do próximo livro?

Nelson Lineu (NL): Na altura em que eu publiquei o “Cada um em mim”, o José de Remédios perguntou-me o que é que se poderia esperar dele. Eu respondi-lhe que o livro já estava escrito, que já lá estava. O que se pode esperar não é o que eu escrevi, mas os caminhos que o livro poderá traçar. Então, o que se pode esperar do meu próximo livro é… 2014 a 2017, há muito aprendizado, muita procura de conhecimento. Tive até possibilidades de reeditar o livro, mas recusei-me prontamente porque sempre achei que tinha que amadurecer a minha escrita. Então, o que se pode esperar, de certeza, é um outro NL, se é melhor ou não, isso não sei, mas é um outro NL.

PPL: É bem interessante esta questão de reinvenção do NL enquanto poeta, de um outro NL, porque num dos textos sobre o lançamento de “Cada um em mim”, tu afirmaste que “viver é partilhar-me com os outros”. Ainda pensas assim?

NL: Naquele momento, para mim, viver era partilhar o NL como pessoa. Eu acho que quando nasceu o “Cada um em mim”, o NL pessoa, o NL poeta e o livro estavam muito ligados, não havia aquela distinção sugerida pelo Fernando Pessoa, “o poeta é um fingidor”. Há um poeta que eu admiro, o Mário Quintana, ele diz que a sua biografia é tudo aquilo que ele escreveu. Mas eu não penso assim agora. Hoje eu ando à procura do estético, do belo. Viver pode até ser partilhar, mas partilhar a ideia que tenho sobre a poesia, sobre a literatura ou a arte.

PPL: Então, temos um novo paradigma, uma nova conotação? O que é viver, agora, para ti?

NL: Não estou a dizer que o “NL pessoa” já não ache que a viver seja partilhar-me. Eu como pessoa faço isso, mas como poeta já não me partilho, aliás, partilho o que eu penso sobre a arte. Hoje eu creio que a poesia me leva a outros campos que me fazem perceber que a vida sem poesia não é possível… Mas isto não quer dizer que ela [a poesia] esteja ao alcance de todos. São poucas as pessoas que conseguem captar essa possibilidade da poesia.

PPL: Segundo o jornal “DW”, um texto [conto] seu “convenceu” o Mia Couto e o José Eduardo Agualusa durante as “Oficinas Literárias” realizadas na Fundação Couto, em Março de 2016. O NL pretende romper com a poesia?

NL: Não gosto de pensar assim. Em 2016, o Celso Muianga [editor da Fundação Couto] perguntou-me sobre os meus contos. Eu disse-lhe que não queria “sair” da poesia, que me queria afirmar ainda como poeta. Acredito que aquilo era um convite para publicar os meus contos. Não cheguei a publicar e creio que alguém “tomou o meu lugar”. Sinceramente, não me arrependo, eu ainda precisava de consumir muita prosa. Eu dei aulas de português e isso me deu muita preocupação com a língua em si, o que me faz recuar sempre quando o assunto é a narrativa, não só no domínio da língua, envolve também o enredo, as técnicas de escrita, então… Eu não quero cometer os erros que cometi na poesia. Não são necessariamente erros, eu tinha um conjunto de leituras, mas não como hoje. Não gostaria de aparecer na prosa como alguém que está a iniciar. Vou lendo, escrevendo, aprendendo. Não quero publicar prosa tão já. Prefiro estudá-la. Aliás, nem seria um rompimento, eu comecei a escrever como prosador. Dentro do Kuphaluxa, eu e o Quive fazíamos prosa. A professora Fernanda Angius criticou ferozmente a minha prosa, mas achou natural a minha poesia, “Lineu, aqui tu és artista”, disse-me. Daí o meu investimento na poesia…, e vou morrer a fazer isso. Eu tenho uma grande paixão pela prosa mas enquanto eu não for capaz de dominar os seus instrumentos de escrita, não vou publicar nada.

PPL: Podemos então esperar alguma prosa do NL no futuro?

NL: Claro!

PPL: Já agora, alguns membros dos fundadores do Kuphaluxa, em particular o Eduardo Quive, Japone Arijuane, Amosse Mucavele, Mauro Brito e tu estrearam-se em livro com poesia. Há alguma explicação para tal?

NL: É muito interessante o que me perguntas, porque é uma mentira agradável. O Amosse começa a escrever poesia dentro do grupo, pois escrevia antes prosa, o Quive também. Eu comecei no Kuphaluxa como “homem da poesia”, mas depois comecei a oscilar e entrei para a prosa. Sempre existiram essas mudanças, de prosa para poesia e vice-versa. Eu acho que nós éramos ecléticos, ou seja, mostrámos que podíamos escrever quer prosa quer poesia, mas a questão é onde é que cada um se sente bem. Hoje eu acho que o Amosse escolheu a poesia. Eu estou com alguns projectos de prosa, cada um escolheu um campo. É preciso sublinhar que não foi uma questão de vendas, até porque a poesia não vende. Eu gosto da prosa e a minha maior influência foi o Mia Couto, embora tivesse lido o Craveirinha e o Ungulani; o Mia mostrou-me que é possível conviver com vários estilos, que eu posso fazer poesia, crónica, eu amo a crónica… se me questionassem “NL qual é o teu gênero favorito?”, eu diria crónica… Mas é poesia, crónica, conto, romance, o Mia escreve tudo isso, eu li quase toda a obra do Mia Couto, e isto foi fundamental para mim. Invisto mais na poesia porque eu quero ter os pés firmes na poesia antes de empreender outros voos.

PPL: O NL faz parte do grupo original do Kuphaluxa. Hoje escritores publicados e populares dentro e fora do país. Vocês ainda continuam amigos, ainda são membros activos do grupo?

NL: Eu fui secretário-geral do grupo e depois director da revista “Literatas”. Para mim, o Kuphaluxa ajudou-me a viver, deu-me o ar que precisava, não necessariamente ganhos financeiros ou cargos, mas ar para viver, pois sempre andei fechado. Quem lê a história da literatura de moçambique percebe que, conforme os membros dos grupos vão publicando livros, a fama, o protagonismo que um ou outro assume… isso incomoda. Eu não me assumo um membro activo do Kuphaluxa, mas quem está dentro do grupo sabe que eu não estou lá por certos motivos. Talvez seja a busca de protagonismo, fecharam-se-me certas portas, é aquela coisa de “com quem eu quero trabalhar”. Esta é uma das minha maiores dores, mas é um daqueles filhos… se calhar eu esteja errado, vou deixar o Kuphaluxa andar e eu estarei para aplaudir quando boas coisas acontecerem. Eu estarei sempre lá para dizer as coisas com as quais não concordo. No fundo, crescemos, questões da vida aconteceram, as faculdades, as namoradas, etc. Estão lá ainda alguns membros fundadores, o Quive, o Isidro, o David Bamo; outros, como eu, ainda mantemos o mesmo espírito. Continuamos a fazer o que nos levou a criar o grupo, seja o Amosse Mucavele ou o Mauro Brito, continuamos a divulgar o livro e a criar o gosto pela literatura. O espírito do Kuphaluxa ainda está lá, não é somente publicar livros, sermos amigos ou andarmos juntos; podemos discordar sobre diversos aspectos da vida mas aquilo que faz o Kuphaluxa é indiscutível.

PPL: Nas vésperas da sua saída do secretariado do Kuphaluxa, o NL disse “acreditava no poder da literatura e nas janelas que o livro abre”. Ainda acredita na literatura?

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NL: Eu saio do Kuphaluxa quando ainda poderia continuar por mais anos. Sempre ficou claro a ideia de rotatividade. Eu queria dar esse exemplo aos outros membros. O desejo foi sempre formar mais pessoas e passar o testemunho. Não é uma questão de cargos, até porque o conceito de cargos é político demais. O que eu quis passar no momento é a ideia de que todos devemos sair. Ainda acredito na literatura, sempre! Incentivar a leitura é tudo para mim. Sou fruto da leitura e das janelas que o livro proporciona. Eu acredito nisto. Mas também não estou a dizer que as pessoas devem ficar sentadas em casa a ler e acharem que depois terão um emprego, estaria a ser um falso profeta, mas é pela capacidade de imaginação, criatividade e abstracção que o livro pode trazer. Isso foi fundamental para mim e acredito que pode ser para as outras pessoas também.

PPL: A professora Sara Jonas encontrou lances do existencialismo na tua poesia. O que é que o NL procura? Algo relacionado com o acidente que teve?

“cada um em Mim”, 2014

NL: Estamos aqui a buscar três identidades, o NL pessoa, o poeta e o formado em filosofia, que gosta da corrente existencialista. Quando escrevi o “Cada um em mim” eu não tinha em conta estes aspectos do existencialismo, é algo que descubro tempos depois. O existencialismo nada teve a ver com o acidente. “Cada um em mim” está relacionado com uma viagem que fiz à cidade de Quelimane, depois de ter abandonado o meu primeiro projecto de poesia. Eu sou de Quelimane, lá nasci, vivi em 4 ou 5 bairros, estudei, cresci, fiz rap… começo a escrever poesia do nada, de férias. Eu conheço 85% dos becos de Quelimane, aqueles becos iguais aos da Mafalala. Cada local que vi recordava-me de tudo que vivi com as várias pessoas que conheci, os outros. Quando me dei conta, eu tinha um corpo de poemas. É um livro que eu gostaria de reeditar dentro de 5 anos. Esse existencialismo devem ser essas vidas, essas memórias.

PPL: O próximo livro será também existencialista?

NL: “Cada um em mim” evidencia um grande dilema, eu era um estudante de filosofia, aliás, serei sempre um eterno estudante. Eu fugia desse contacto entre a filosofia e a poesia, e é por isso que eu não cito filósofos na minha poesia. Eu vejo grandes poetas moçambicanos a fazerem isso e até acho fantástico. Mas para mim é como se… como se eu não estivesse a fazer grande coisa. É louco quando o Craveirinha ou o Patraquim chamam o Aristóteles ou um outro filósofo nos seus textos, no meu… é como se eu tivesse… eu não me sinto com essa grandeza de evocar filósofos. Não gosto de fundir estes dois campos. O Padre M. Ferreira disse que não sabia se o “Cada um em mim” era poesia filosófica ou filosofia poética… Eu sofria de um conflito interior, eu não queria juntar filosofia e poesia. No meu novo livro eu tento conciliar isso. Acho que funciona muito bem essa combinação, quero fazer uma nova viagem. A filosofia usa o método lógico-racional. Eu uso, no novo livro, “Cor do voo”, o ilógico, como por exemplo quando digo que “A folha fotografou o rio”. A folha não é capaz de fotografar.

PPL: O existencialismo do “Cada um em mim” inicia-se em Quelimane, o que é curioso, pois num dos teus poemas escreves “o que me mantém fixo/ a Quelimane/ não é a raiz”, o que é?

NL: Gosto muito deste poema. O que me mantém fixo a Quelimane não é a raiz, é o fruto, como quer sugerir o poema. Tenho a raiz, sou de Quelimane, mas sou fruto que tomba em qualquer parte do mundo. É como o Mussa Rodrigues [músico cego e já falecido que era famoso por tocar uma viola de latão], que é de Quelimane, mas ele não é artista porque é de Quelimane, o ser artista é o fruto da árvore.

PPL: A sua poesia é bastante limpa, sem muitos “arranjos florais”. Qual é o seu sentido oficinal?

NL: Confesso que, pelo bem ou pelo mal, foi-me difícil discernir o poeta do fingidor, era tudo muito ténue. E eu sou indisciplinado por natureza, gosto de ser marginal, de ser da periferia, talvez seja por isso. Deve ser também do trabalho que fiz com a professora Fernanda Angius, que marca o meu lado humano e a minha poesia. Ela foi a minha mentora e fundamental para a busca do conhecimento da língua [portuguesa]. A minha estética é indisciplinada, constrói-se por si própria, sem intenção alguma. Acho que é mais interessante que o “Cada um em mim” fale por si e não que eu fale por ele.

PPL: O Nelson Lineu e o Kuphaluxa fazem parte de “uma geração” chamada, pelo escritor Aurélio Furdela, de “Geração Internet”. Qual é a sua opinião sobre o assunto?

NL: Penso que uma grande parte dos novos escritores está ligada aos blogues, facebook e revistas electrónicas. Mas eu não gosto muito do debate sobre gerações. Acho que ainda somos jovens, incluindo a geração do Furdela, se é que ela existe. Ainda somos jovens para ficarmos horas a fio a discutir essa questão. O que me interessa é trabalhar os meus livros. Não nego, entretanto, o papel da internet na divulgação dos novos escritores moçambicanos em Angola, Portugal e Brasil. Aliás, mesmo os que não fazem parte desta “Geração Internet” são hoje conhecidos fora do país a partir da internet. Será que estamos a falar de escritores que surgiram pela internet ou de escritores que se afirmaram pela internet? Essas discussões não são importantes, criam mais discussões e situações negativas no lugar de ficarmos em nossas casas a escrever e tentar perceber o mundo.

PPL: O NL vive actualmente numa “zona” chamada “O Pulmão da Malhangalene”, que, diz-se, foi o último reduto do poeta Eduardo White. Qual é a magia daquele lugar?

NL: Pelo que eu li do White nos últimos tempos, ele tinha uma relação muito forte com as pessoas, principalmente com as senhoras que vendiam vegetais. Um amigo meu, o Jessemusse Cacinda, perguntou-me como é que em tão pouco tempo eu tinha tanta popularidade com as gentes do “Pulmão”. Talvez porque o White e eu somos de Quelimane [risos]. Eu convivo com as pessoas, temos aquela relação, mesmo com as “mamanas” [senhoras, mães] que vendem coisas que geralmente eu não compro. Acho que o White gostava de conversar com as pessoas, de ouvi-las. Então, o lugar propicia essa situação de estar com as pessoas… não é o lugar que faz o poeta, é a capacidade de captar as pessoas.

PPL: É mais ou menos aquilo que o Eduardo White dizia, “O artista não representa o povo, o artista faz parte do povo”…

NL: Eu não gosto muito de me assumir como “povo”. “Povo” é um simples conceito. Eu não sei quem é ou não é “povo”. Eu não sei se o Presidente da República é “povo”. Se o presidente de um partido político é ou não “povo”. Eu não entendo isso. Não me quero meter porque acho que esse conceito é impreciso. É um conceito desgastado, é como população, eu prefiro falar de homens ou seres humanos. Esse é o ponto crucial, White foi o maior poeta que nós tivemos, pela revolução que ele fez. Há um poema-homenagem ou ode que faço ao White, que talvez apareça no meu próximo livro, qualquer coisa como “Enquanto existia sangue/ nos papéis/ ou nos livros/ White trouxe amor.” Esse é o grande mérito do White. É esse amor que representa a humanidade. É isso que faz com que exista essa ligação ícone com White quando nos sentámos com as senhoras do Pulmão, do Compone, do Xiquelene ou de qualquer outro sítio. É o amor, a humanidade é que conta. “Povo” é apenas um conceito político.

PPL: Só para terminar, podemos assumir que o Kuphaluxa “criou” escritores?

NL: Eu acho que o Kuphaluxa ainda não criou escritores. Ainda não criou porque publicar livros não era no nosso objectivo [quando criámos o grupo]. Eu acho que ninguém do Kuphaluxa se pode assumir como escritor já feito. E, sinceramente, deve-se falar aos membros do Kuphaluxa que o caminho ainda não está feito. Publicar livros e aparecer na televisão não fazem o escritor, o livro sim.

PPL: E se fosses editor, dos actuais membros do Kuphaluxa, qual seria o primeiro que publicarias?

NL: Dos que tem livros?

PPL: Não, dos que ainda não publicaram.

NL: O Hermínio Alves. Ele é dos que está preocupado com a escrita em si. Outrora foi moda ser do Kuphaluxa. Alguns membros estavam somente preocupados com a fama, aparecer na televisão e dizer poesia… Mostraram que não seriam capazes de dar um outro passo. Mas o Hermínio Alves tem espírito de escritor. Ele é a minha escolha, sem dúvidas.

Pedro Pereira Lopes é escritor, docente universitário e pesquisador. Fez rádio, música e criou os blogs "Kumbukilah" (2009), "cadernos de haidian" (2012), "Entre Aspas Escritor (2013), entre outros. Editou a web-revista de literatura jovem “Lidilisha” e assina a coluna "Vão homens ao meu lado distraídos", no jornal "Debate". Tem formação superior em Administração e Políticas Públicas.