Falava com cães, árvores e anjos, sobretudo cães. Era uma sombra viva, de voz calada e coração difícil de radiografar. Digo isto porque Buda simpatizava com anjos mas não era chegado a crianças. Cavaqueava com grande parte dos cães da vizinhança, todavia Jack e Rock eram os seus mais-queridos, aos restantes não lhes dava atrevimento. Passavam as manhãs, os três, debaixo da copa de uma mangueira alta, discutindo sobre os valores pervertidos dos homens e sobre a fidelidade dos cães. As árvores do quintal – a mangueira, uma laranjeira e um abacateiro – eram, às vezes, convidadas para opinar, mas estabelecia-se uma comunicação estranha, visto que os cães não entendiam o ramalhar das plantas e porque elas se lamentavam com frequência: queixavam-se dos cães, que as faziam de mictório, e queixavam-se dos humanos, porque trepavam-nas sem piedade, tirando-lhes os frutos; podavam-lhes os ramos sem consentimento algum; e esculpiam, nos seus troncos, corações com transitórios dizeres. Por este e outros motivos, Buda nunca cavaqueava com as árvores na presença dos cães. Depois do almoço, ele costumava levar os quadrupedes para um passeio no riacho, onde se banhavam e ficavam ao sol. Era no riacho onde lhe apareciam os anjos. Os seres alados gabavam-se das suas proezas diárias (quantos ímpios tinham convertido, quantos acidentes tinham evitado, entre outras tagarelices de anjos) e descreviam os avanços, daquele cujo nome é impronunciável, na sua jornada para subjugar o mundo. Por sua vez, Buda questionava-lhes quando é que poderia conhecer o céu e se já não era um bom momento para se fundar uma escola de línguas, onde ele seria director e professor. A resposta dos anjos era constante, não cabia a eles tais decisões. Era sempre assim.
Ninguém sabia ao certo quando é que Buda se tornara poliglota e iluminado, mas o seu pai, o senhor Jonas, andava já preocupado, afinal o homenzinho era o seu único filho. Buda recusava-se a ver um especialista:
“Nunca estive tão são”, dizia.
O pai não se chateava, tinha sempre pressa e reuniões na empresa.
“Eu disse-te que os cursos de filosofia não prestavam. Não têm utilidade, já vês, o miúdo está formado mas não tem emprego”, replicava a mãe.
“Mas ele pode ensinar numa escola!”
“Ensinar filosofia não é exercer filosofia. Um professor de administração é de longe um administrador”, gritava Buda do quarto.
“Se não foi a filosofia, foi a poesia. Que vida vadia tu levas!”
“Não é vadia, mãe, é vazia, livre de mundanices!”
“Mil vezes repleta de mundanices do que de palermices!”
A vida de Buda seguia na mesmice. Falava com cães, árvores e anjos. Banhava-se no riacho e deixava-se nu durante horas, energizando as suas partes do interior ou o seu traseiro achatado. Um dia, cansado da rotina, decidiu introduzir filosofia nas suas conversas com os anjos. Na primeira semana, os anjos ficaram palermas com a repentina mudança do homem – o único capaz de lhes falar desde os tempos de Paulo –, e evaporavam-se assim que lhe descobriam as intenções. Na semana seguinte, quando sentiram o beicinho trémulo, as criaturas caíram, por assim dizer, em voo turbinado na margem do riacho. E fizeram-lhe revelações de dimensão bíblica. Contudo, como Buda não andava interessado, pouco dedicou-lhes os seus ouvidos. Quando chegou a sua vez, o homem fez-lhes três perguntas:
“Há filosofia no céu? Ser ou não ser, eis a questão? O que fazia aquele de Nome Inefável antes de conceber o mundo?”
Os dois anjos, Nithael e Josenaldo, acotovelaram-se até um deles não poder mais. Eram informações classificadas, segredos do Estado Superior, diabo!, sabiam que teriam sérios problemas com o Gabriel. Mas o Josenaldo, o mais bravo dos anjos de baixo escalão, vendo uma oportunidade de cair de uma vez por todas e prosperar no ramo religioso, resolveu abrir a bolsa de silêncios:
“Os anjos inventaram a filosofia. Fomos os primeiros a questionar a acrosofia e as obras do Pai. A filosofia chega à terra com a primeira vaga de anjos caídos. Lilite, ao questionar a sua submissão a Adão, inaugurou aquilo a que vocês chamam de estar a caminho.”
Buda abanava a cabeça, feliz com o seu progresso. Mas quando Josenaldo abria outra vez a boca, um trovão ressoou do âmago do Sétimo Céu, era o Gabriel. Os dois anjos evaporaram-se para longe, para Belém do Pará, devido à má precisão no teletransporte. Uma vez interceptados, Nithael foi transferido para o subsector de evangelização; Josenaldo, achado principal culpado, teve sorte pior, não foi desterrado como solicitava, permanece no céu, tendo porém sido confiscadas as suas asas.
A mania de ficar com as partes do interior desguardadas já assustava o senhor Jonas. Buda recusava-se a trajar o que quer que fosse.
“A filosofia faz-se melhor de forma natural.”
Falava de Aristóteles e de Nietzsche aos cães. Nas noites punha Jack e Rock na sala de estar, ligava a televisão e juntos examinavam as notícias do país. Indignada com o filho, a mãe fechava-se no quarto. O diagnóstico do médico especialista foi honesto, Buda era esquizofrénico. O senhor Jonas estava chocado.
“Um filho meu não fica louco. Não um sangue do meu sangue!”
“As tuas insinuações violentam-me os ouvidos e estraçalham-me o coração”, chorava a esposa.
Como não existia uma provável desculpa médica ou biológica, acusaram as suas leituras.
“Foram os livros. Viveu tempo demais noutros mundos. Eis o resultado: é um homem imundo!”, dizia a mãe. “As páginas viciam, é por isso que ele, às vezes, as cheirava.”
Ficou resolvido, Buda seria internado. Levaram-no para a psiquiatria numa manhã de sábado. Ele, avisado por um anjo amigo, estava preparado, nem sequer deu luta, a violência não tinha lugar no seu pensar filosófico. Deram-lhe uma injecção e Buda adormeceu, estavam acautelados para que ele não se despedisse dos seres com quem confabulava.
Cinco meses depois, Buda tornou ao lar. Houve uma recepção animada. Os animais e as árvores não tiveram parte no evento. Aliás, as árvores tinham sido arrancadas e o quintal estava tão protegido que não possibilitava a entrada de cães. Ele tinha deixado de ser poliglota.
Quando Buda teve o seu primeiro filho, uma menina de olhos grandes, um dos amigos ofereceu-lhe um cachorrinho magricela, da cor de açafrão, “É para cuidar da menina!”, disse-lhe. Buda jamais dirigiu palavra ao animal, ignorava-lhe as cheiradelas e rosnadelas. A mim, que sou o seu anjo protector, o idiota nunca enganou. Buda continua a ser o que sempre foi, um maluco secreto.