o meu avô era uma espécie de mago. quando eu era ainda uma criança, ele travou o choro de umas nuvens negras com as suas próprias mãos. de estatura média, chupado, o meu avô usava uns óculos de lentes grossas e tinha um sorriso amigável, o que não diminuía, ainda assim, o mistério sobre si. falava num português requintado e, para onde quer que fosse, levava sempre uma gravata ao colarinho e um pequeno lenço no bolso da camisa
quando tive uma idade razoável para saber das coisas, descobri, afinal, que ele era químico, que extraía álcool da cana-de-açúcar. nesta altura, os rapazes matreiros do bairro chamavam-no “o homem e o líquido”, devido ao consumo indesculpável de bebidas alcoólicas – um mal que talvez tivesse alguma relação com a sua profissão –, o que exasperava a minha avó
quando não estivesse muito ébrio, ao anoitecer, o meu avô punha-nos sentados, a mim e aos meus irmãos, e contava-nos histórias. cada narrativa era um mundo por encontrar, no seu português assimilado, as palavras construíam um inesperado novelo de linha e a magia acontecia no seu desmanchar, como cócegas no ouvido ou tempestades de imagens. para mim, aqueles personagens – como os animais, guerreiros, viajantes ou comerciantes e também pessoas comuns – não eram seres fictícios, eles existiam, habitavam um outro plano ou dimensão onde as suas heroicidades ou perversidades eram possíveis. com o tempo, porque o meu avô bebia cada vez mais e o esquecimento passou a ser uma das suas práticas constantes, aquelas histórias foram perdendo os seus finais: a cada novo dia, as mesmas histórias tinham finais diferentes
saí de casa do meu avô aos dezoito anos, e quando lá vou, poucas vezes, não fico mais de um mês. hoje, os papéis estão invertidos, eu invento as histórias e ele as ouve. disse-me que gosta dos meus livros, dos meus personagens, do “homem dos 7 cabelos” e do “kanova”
“são bravos, os rapazes”, comentou, enquanto comíamos uma galinha cafreal com muito piri-piri
o que o meu avô não sabe, se calhar, é que costumo ter saudades daquele tempo – do tempo em que tudo não passava de “era uma vez…” –, de ficar deitado numa esteira com os braços debaixo da cabeça e as pernas em quatro, a procurar constelações no céu, enquanto oiço a rouquidão da sua voz ou as mil e uma vozes dos personagens que ele criava
em 2015, pouco depois da edição brasileira do meu segundo livro, decidi ir a inhambane, a conduzir. iam comigo o meu irmão e o escritor galego joão guisan, que visitava moçambique e áfrica pela primeira vez. foi uma viagem nocturna, cheia de receios e adrenalina. era a minha primeira longa viagem desde que começara a conduzir, de modo que aquela era uma experiência também nova para mim. depois de inharrime, o joão passou a controlar o leme do carro. tínhamos os olhos colados às bermas da estrada, o combustível estava baixo e não me parecia que fosse suficiente. perdidos e sozinhos, engolidos pela escuridão, num impulso, o joão reduziu a velocidade e deteve o carro
“quero ver as estrelas”, disse o joão, olhando para mim com um sorriso de escritor europeu
“estrelas”, perguntei, abrindo a porta do carro
saímos os três! no céu, as estrelas, indiferentes aos nossos olhos, continuavam a brilhar. na verdade, eu não me lembrava de tê-las visto em tal condição, tão luzentes, tão acesas – “é porque aqui há nenhuma luz e poluição”, pensei –. e pareciam que estavam rodeadas de uma poeira azulada também luzente, o stardust, talvez. o joão, entusiasmado, sorria um sorriso de escritor europeu que também é astrónomo, nomeando as constelações como quem reconhece as figuras de estilo
“cão maior, unicórnio, centauro…”
lembro-me do meu avô, que era uma espécie de mago, sempre que vejo um espectáculo de estrelas, da sua capacidade de criar histórias de nenhures, como aquele brilho encontrado algures a caminho de inhambane. aliás, há sempre estrelas no meio de qualquer caminhada – parentes, amigos, amores ou desconhecidos – só não temos, na maioria das vezes, a sensibilidade de joão guisan para apreciá-las.