estava longe de ser uma bela manhã. não fazia sol, chovia, uma tonelada de água encharcava o topo da palhota. alguns fios corriam sobre as paredes de argila negra, a casa sangrava mas não se queixava, casas não devem chorar, ainda que seus sentimentos fossem como a retrete do fundo do quintal, que borbulhava resíduos e germes. graças à chuva aquele fertilizante iria parar nos canteiros de batata-doce, teriam melhor préstimo lá. chovia como se deus urinasse sobre um ninho de formigas indefesas, pois casa aquilo não era. não era uma bela manhã, qualquer coisa que fosse, não uma bela manhã

o velho, que permanecia na entrada da varanda da palhota, empurrava, com uma vassoura de ramos secos de pequenos arbustos, os resíduos e germes que ali montavam quartel. praguejava, arrependia-se de ter largado a prática dos seus poderes mágicos, se os ainda tivesse, há muito que aquela chuva deplorável teria sido travada. não lhe sobrava nada, nem um pingo de magia. um estrondo fez-lhe sentar sobre o chão húmido, a fome também não o ajudava. havia vinte horas que não comia, dois chás não o tinham saciado. ergueu-se de rompante e voltou a pensar nos poderes mágicos que já não tinha, na quantidade de problemas que teria solucionado, o dilúvio, os germes e a fome. o velho não tinha remendo, tão salientes eram as suas rugas, contudo não perdia o gosto pelos sonhos. sonhara a vida inteira sem jamais ter vivido os seus sonhos. depois de muitos anos, só lhe restava a experiência – e quem contrataria um professor daqueles? sonhar era, afinal, o único poder que ainda lhe restava, um resto inútil, uma porção pequena de inutilidade

a chuva ganhara velocidades menores. a merda não cheirava, menos mal, mas os germes amolavam o velho. teriam sobrevivido ao grande dilúvio ou teriam nascido dos resíduos acumulados na arca de noé? não lhes percebia o sentido da existência. insultou-lhes com um cuspo fraco e puxou o rádio que estava sobre a mesa plástica de três pernas – duas delas cozidas com fios de arame. deu duas palmadas ao aparelho, o objecto fez-se de difícil, talvez uma cabeçada, não, continuaria mudo. tirou-lhe as baterias, três cilindros vermelhos de aspecto cansado da marca “777”. lembrou-se de mateus, mas não divagou, já não lhe diziam muito as leis dos profetas. uma a uma, amassou as pilhas com os dentes, num esforço de dar-lhes outra vez vida, transmitindo-lhes a vida dos seus dentes que se esvaiam em fome. uma delas esviscerou-se, vomitando uma gelatina que lhe irritou a língua. alegrou-se com a seguir o velho, a voz de um poeta irrompeu o ar com uma graça divina. estava contente porque tinha mais companhia para depreciar a enormidade da chuva, mas a língua estava acidificada, de modo que a desabrigou da boca e aproximou-a dos pingos de chuva. o locutor da estação de rádio suspendeu a música para anunciar a continuidade do mau tempo por mais dois dias. o velho quase choramingou, a casa e os seus sentimentos não durariam tantos dias, e depois a trabalheira que seria remendar os traços de barro derretido

seguiu-se uma música velha, de um talento da sua época, que, como muitos, fora contido pelas promessas. rasgou uma página de uma pequena edição do “novo testamento” e enrolou um tabaco que lhe fora oferecido por um amigo. a caixa de fósforo estava velha e húmida, o palito incendiou-se depois de duas tentativas. fechou os olhos como se fumar fosse uma solenidade. puxava devagar, o ar para dentro do cigarro; o fumo demorava-se dentro de si, visitava-lhe os pulmões, as veias, o coração, quando saía, a sua composição não era a esperada. fome e fumo são duas palavras próximas, pensou ele, com os olhos ainda fechados, parecem formas do mesmo verbo, fome é presente, fumo é futuro. queimou a ponta dos dedos, por hábito, sabia gozar dos prazeres que lhe eram possíveis. quando o noticiário foi anunciado, tirou as pilhas do rádio, assim como as leis dos profetas, as notícias do país e do mundo não lhe interessavam. que de novo diriam? estava cansado de ouvir “pelo menos x pessoas morreram…”, morre-se e pronto!, dizia. sentiu falta, naquele instante, do seu neto mais velho. o rapaz andava na escola secundária e queria ser jornalista. o neto era inteligente, mas o velho não gostava da ideia, e se um dia ele ouvisse, no seu radiozito, que o menino tinha sido assassinado? jornalista jamais!, que fosse professor ou enfermeiro, são profissões dignas, de fome não se morre

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mordeu as pilhas outra vez, antes de pô-las no rádio. decidiu fazer um chá para esquentar o estômago e esquecer a saudade que tinha do neto. quando o rapaz era mais novo e ele ainda trabalhava, gostava de apresentá-lo aos colegas, e eles ficavam – ou fingiam ficar – felizes com a visita. agora o rapaz vivia enfiado nos livros e fazia tranças como uma mulher. o velho envergonha-se, temia que o seu neto passasse a usar, também, saias, blusas cor-de-rosa ou vestidos floreados. pousou a chaleira no fogão, ainda não era a boca de um vulcão, mas não podia desperdiçar aquele calor. a chuva ganhara velocidades ainda menores. perto dos canteiros de batata-doce, dois patos revolviam com o bico a terra. talvez minhocas ou germes. o velho, assanhado, levantou-se, não queria que as aves bípedes arruinassem a sua próxima safra. meteu-se debaixo da chuva, enxotou-as com paciência, evitando tanto quanto podia, empapar os sapatos. um dos patos, o mais idiota, metido a velocista, equivocou-se na direcção e foi parar na varanda da palhota. o velho praguejou, xô!, xô!, mas o pato, descobrindo a entrada do labirinto, fugiu para dentro da palhota. o velho seguiu a ave, esquecido já do seu chá. xô!, xô!, berrava o velho, rouco, o pato nem sequer grasnava, estava muito a vontade

cansado, meio morto de fome, o velho apoiou-se numa das paredes húmidas da casa, para depois voar num salto enferrujado, maldita parede!, por pouco não era engolido. o pato, um belo e crescido espécimen, estava decidido em não reconhecer a saída. quando o seu bucho malcriado voltou a rugir, o velho apercebeu-se da tolice que estava prestes a fazer. aquele pato não fora ali chamado ou forçado a entrar, ele estava ali por vontade própria, logo, o que o velho ideava naquele instante não seria um crime contra a sua vizinhança, ser comido é a fortuna do oferecido. fechou a porta. ter as mãos fechadas sobre o pescoço da ave foi mais fácil do que a enxotar

o velho comeu até não poder mais, apenas metade, deixou a outra porção do guisado para o seu neto mais velho, esperando que ele surgisse do nada, preocupado com a enormidade da chuva. estava longe de ser uma bela noite. chovia de forma tão grosseira que o velho acreditou que chovia dentro do seu quarto. deitado numa tarimba, envolto numa manta que se desfazia aos fiapos, o velho desistiu de sonhar.

Pedro Pereira Lopes é escritor, docente universitário e pesquisador. Fez rádio, música e criou os blogs "Kumbukilah" (2009), "cadernos de haidian" (2012), "Entre Aspas Escritor (2013), entre outros. Editou a web-revista de literatura jovem “Lidilisha” e assina a coluna "Vão homens ao meu lado distraídos", no jornal "Debate". Tem formação superior em Administração e Políticas Públicas.