Um copo de vinho que fecunda as flores. Bebo só, sem nenhum amigo por perto. Ergo o meu copo e salvo a lua, cinzenta, quase magenta, cortejo ainda a minha silhueta, ela não fica de fora, é uma festa de três. A lua não bebe e a minha sombra limita-se a reproduzir os meus movimentos, mas por um momento considero-os o que não objectivamente são, e respiro a primavera, sorrindo à sombra, acenando à lua, afinando um passo de dança. Estou sóbrio, estamos todos felizes, bêbados, a cada gole, uma deixa, essa minha amizade louca comigo mesmo.
Rarefaço-me desse momento de hedonismo, esse prazer decadente não me consola; 28 de Março, uma sequência de números que traduzem algo, hoje é o meu dia de anos. Nem nada, só os famosos poemas de aniversário. O Vinícius: “Passem-se dias, horas, meses, anos/ Amadureçam as ilusões da vida/ Prossiga ela sempre dividida/ Entre compensações e desenganos.” O Pessoa: “Somam-se-me dias./ Serei velho quando o for./ Mais nada./ Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!…” O Drummond: “O meu significado/ Da palavra aniversário. […]/ Espécie de relicário,/ Dos versos que eu escrevi,/ Com todo amor, e não li,/ Durante o ano passado.” E logo o Quintana que me faz, sonâmbulo, atravessar O deserto sem nenhuma bebida gaseificada no bolso: “Idades só há duas: ou se está vivo ou morto.”
Nada inova o estado configurado do meu espírito, mas apraz-me desligar o silêncio, desligar a escuridão e acender as tomadas das coisas que não gostaria de esquecer. No fundo da casa, um homem embriaga os copos com um uísque forte, sinto-o como se não fosse uma pessoa real, movida pelas minhas palavras, pelo meu último grito inteiro, não, não apócrifo “let my people go”, qualquer coisa como toneladas de elefantes sobre os meus ombros. Des-solteirarei os meus sonhos, brevemente, com realizações como gozos na cara da utopia.
A festa sente uma melancolia palpitante e os meus ouvidos pontapeiam o altifalante, ou vice-versa, mas nada me resta desse enlace, desconvido-me prontamente. E a ideia nutre-me um aperto no peito, “O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa”. Hoje é o meu aniversário, mãe!, o que a senhora tem para mim? Acha-me crescido em suficiência? Será que ainda pesam os meus actos sobre os seus ternos olhos? Eu possuo cada vez mais livre-arbítrio, e isso faz-me mal: transformei-me num incorrigível perguntador, pergunto sobre a dor e o amor, sobre o santo e o mal, sobre a meta-ética cristã.
Terei que lutar pela minha própria família, e sinto no riso, no brilho cicatrizado dos meus olhos, um cuspo pesado que incomoda engolir. Esses anos não impedirão a minha mente de vaguear, eu serei sempre assim, colado à minha inconsciência responsável. Agora o som está mais forte, as luzes giram e noto que a lua me deixou, só esses astros luminosos, que não me fazem sentir nada. Agora sinto que não quero sentir mais nada, nada mesmo, quero apenas etilizar-me de liberdade, libertinar-me. Amanhã desembrulharei o meu presente de aniversário: espero que seja uma espécie de mapa para a felicidade.
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